Filho não se escolhe, mesmo quando é fruto do nosso próprio DNA. O processo é aparentemente simples: os cromossomos da mãe se juntam com os do pai e a mistura resulta em um ser único. As particularidades, porém, podem variar de um olho verde a uma má formação ou doença congênita – não há como prever.
Então, por que o sistema de adoção funciona como a prateleira de um supermercado, onde é possível escolher o produto que se quer?
A resposta, segundo uma das autoras do guia digital “Três vivas para adoção”, que será lançado em Brasília nesta sexta-feira (25), é que muitos mitos ainda pairam sobre a questão. Especialmente, quando as crianças fogem do perfil mais procurado: brancas, com menos de 3 anos, sem irmãos e “saudáveis”.
Crianças disponíveis para adoção (Foto: Caio Kenji/G1)
Em 118 páginas, o e-book orienta mulheres, homens e casais que desejam adotar pela perspectiva de quem fugiu do padrão majoritário. Há depoimentos de famílias, de uma “mãe social” (que cuida das crianças em um abrigo), de um juiz e de uma jovem adotada que é portadora do vírus HIV desde o nascimento.
“Sou primariamente uma pessoa que tem apoio e carinho familiar e que têm ambições, mas também sou a pessoa que passou por um processo adotivo e tem HIV. Ambas faces fazem parte do meu ser com a mesma naturalidade”, diz o relato da adolescente.
“Três Vivas para a Adoção” é resultado da parceria do Movimento de Ação e Inovação Social (que compreende o Movimento Down e o Movimento Zika) com a Associação Nacional de Grupos de Apoio à Adoção (Angaad), a ONG Aconchego, a Fundação Ford, o Conselho Nadional de Justiça, a Associação Brasileira dos Magistrados da Infância e da Juventude e o Fórum Nacional de Justiça Protetiva.
Capa do guia “Três vivas para a adoção! Guia para adotantes”, escrito por Fabiana Gadelha e Patrícia Almeida (Foto: Três vivas para a adoção/Reprodução)
No Distrito Federal, das 512 famílias habilitadas para adoção, apenas 37 estão dispostas a conhecer uma criança com mais de 2 anos, segundo dados da Vara da Infância e da Juventude. Quando o perfil assume outras características, como algum tipo de deficiência, o índice de rejeição tende a aumentar.
“Esse perfil ideal não existe. Não existe garantia de saúde nem na gravidez. Esse é o erro”, explica a advogada e ex-presidente da ONG Aconhego Fabiana Gadelha, que assina o guia juntamente com a fundadora do Movimento Down, Patrícia Almeida. “As pessoas têm que parar de achar que vão escolher o filho perfeito e ele não vai ter problema.”
“Viver a maternidade e a paternidade é se preparar para a diversidade.”
Passo a passa da adoção no guia “Três vivas para a adoção”, escrito por Fabiana Gadelha e Patrícia Almeida (Foto: Três vivas para a adoção/Reprodução)
Para se preparar para os desafios da adoção, o guia também contém o passo a passo de como dar entrada no processo, e explicações sobre a “busca ativa” – quando ONGs e instituições do governo se juntam para viabilizar o encontro de famílias e crianças a partir de cadastros informais de todo o país.
Passo a passa da adoção no guia “Três vivas para a adoção”, escrito por Fabiana Gadelha e Patrícia Almeida (Foto: Três vivas para a adoção/Reprodução)
Adoção necessária
As “adoções necessárias” são a maior motivação do guia. Elas compreendem todas as crianças que têm dificuldade para encontrar uma família, porque estão fora do perfil mais procurado.
São meninos e meninas com mais de 3 anos, negros, com síndrome de Down, soropositivos, com algum tipo de deficiência, paralisia cerebral e outras doenças congênitas, e com um ou mais irmãos.
Este grupo representa cerca de 90% de todas as crianças disponíveis para adoção na capital federal e também maioria dos meninos e meninas que crescem nos abrigos do Brasil. Só em Brasília, dos 117 meninos e meninas que esperam por uma família, 78 são pré-adolescentes e adolescentes, com idade entre 10 e 18 anos incompletos.
O guia online cumpre um papel importante de conscientização “para mostrar que estas crianças são filhos possíveis”, diz Fabiana.
“O processo de adoção é um processo de amadurecimento. A gente sabe da necessidade de conversar com as famílias sobre o que esperar desse filho que vai chegar.”
Criança disponível para adoção em Mato Grosso (Foto: Jana Pessôa/Setas-MT)
Chegar ao ponto de aceitar uma criança como ela for, às vezes, passa por um longo processo de espera pelo “filho ideal” e de reflexões profundas sobre o sentido da adoção, diz Fabiana.
“Como você recebe aquele filho que é diferente do que você estava esperando? Isso acontece com o filho biológico também.”
“Na gravidez, pode dar tudo certo e, mesmo assim, ele nascer com alguma deficiência. Ou pode nascer saudável e adoecer, isso faz parte”, diz a advogada que é mãe de três filhos, sendo dois meninos adotados – Arthur, de 7 anos, e Miguel, de 9, que tem síndrome de Down.
Ensaio mostra sensualidade da gravidez (Foto: Assis Lima/Arquivo pessoal)
“Quando o adotante tem conhecimento que é possível ter um filho com HIV, sem braço, com deficiência, que vem com outros dois ou três irmãos. Uma criança que tem 5, 6 , 7, 12 anos, ele amadurece e se fortalece para enfrentar as adversidades.”
“Não vem com essa coisa de ser a família da propaganda de margarina.”
“Na adoção você não quer a garantia de nada, é uma questão de escolha. Quando o filho chega, a entrega é a mesma que se ele fosse biológico.”
O mito dos ‘vícios’
Os hábitos adquiridos nos primeiros anos de vida, com a família biológica ou na casa de acolhimento, são o principal argumento de quem recusa a adoção de crianças com mais de 3 anos. “As pessoas acham que uma criança maior vai vir cheia de ‘vícios’, maus hábitos”, explicou Fabiana ao G1.
“Dizem que querem desde pequenos para educar do próprio jeito, mas isso é uma falácia.”
Adoção em Mato Grosso (Foto: Leandro J. Nascimento/G1)
Segundo ela, que trabalha na ONG Aconchego há cerca de dez anos, as crianças maiores têm consciência da própria condição de vulnerabilidade e solidão e isso pode ser um facilitador no processo. “Se ela se propuser a pertencer àquela família, ela vai chegar inteira.”
“Se ela não quiser, não tem jeito. Mas, se quiser, vai entrar de cabeça, porque ela deseja muito uma família.”
‘Filho não é produto’
As crianças disponíveis para adoção no Brasil não foram fabricadas em uma esteira de produção ou trazidas por uma cegonha. Todas elas têm histórias próprias e bagagem familiar, que variam conforme as circunstâncias onde nasceram ou foram criadas até chegar ao abrigo.
“As crianças podem ser frutos de violência, do uso de álcool e drogas, de pais que estavam em depressão ou com alguma questão de vulnerabilidade. Claro que elas vão ter uma perspectiva de vida diferente”, explica Fabiana.
Adoção de crianças (Foto: Reprodução/Globo)
Este histórico, porém não deveria ser um empecilho à adoção. “Posso fazer tudo bacana na gravidez, tomar todas as vitaminas e essa criança ter problemas de aprendizado. Não tem a ver só com genética.”
“É trabalhoso e requer informação, mas a adoção é sustentada por três pilares: o afeto, a lei e o conhecimento.”
Fonte: G1